cinzel arquivos

Saturday, November 25, 2006

Rai

Fio

Regressava a casa cedo. Para ler. Recolhido no sofá, era envolvido pelo jogo de sombras projectado das palavras. Passado a fio de espada, entregava-se às silhuetas negras que subiam dos livros, dominado pelos espectros que difudiam o medo a cada movimento de página. Uma imagem pálida de tristeza que, soltando as folhas, não libertava a solidão.
Nem sabia o que lia. Comprava os livros num quiosque junto à praia durante os passeios da tarde; as life magazines estavam espalhadas pelo chão da sala sem que lhes tocasse. Era o efeito. A página opaca virada contra a luz. A sombra. A sobra.




Fio

Os miúdos, de saída para a escola, viam-no chegar perto da manhã, pouco passava das 7 horas, miótico, inexpressivo, amarrotado sob o blusão preto de cabedal. Comentavam entre si "tem o coração parado", não reprimindo a surdina e um tom de exclamação, revelando um segredo conhecido de todos. "Não!" - diziam outros - "respira em falso".
A meia luz e o frio turvavam a visão - um efeito de enevoamento muitas vezes atribuído à nebula (por vezes usa-se o vocábulo bruma). O resto do sonho, interrompido pela manhã, era exalado num vapor quente - logo condensado no ar - dissipado pela respiração. Suspenso durante o dia. Raymond esperava por um movimento que o levasse daquela posição, siderado, com o olhar fixo sobre nada, e lhe abrisse a porta do prédio, deixando tudo para trás.




Ulrich a

Há dias recebi um mail que assinalava o pormenor de isto ter perdido o interesse. Entre minudências e cumprimentos, aludia-se ao que bom que era, ao past-iche, etc. É quase certo que tão cedo não regressarei ao presente, remittere ad aeternu !, diante do mar - as ondas ®, mas hoje concedo-me ao mainstream e enfrento um dos mais palpitantes desígnios nacionais: a literatura, ela própria. 'O Jovem Torless' é vinha vindimada, pelo que centro a vossa atenção sobre o Homem Sem Virtude, Qualidades e Tradução, pressão alta e recuperação, jogar no limite da antecipação do Hype (esse sacana). Tudo isto a propósito de uma conversa com o senhor Ulrich, meu vizinho de rua, à saída do minimercado da misericórdia, na qual me dava conta da decisão de criar uma editora de livros. O objectivo do senhor Ulrich era demonstrar que uma casa livreira não estava, obrigatoriamente, destinada às grandes coisas da ribalta e sucesso. Com o habitual discuso incerto, a espaços miudinho, o senhor Ulrich lá ia dizendo que uma coisa dessas (uma editora) nem sempre era dinheiro no banco e, inclusivamente, podia dar prejuízo. A alturas tantas já enunciava as estratégias oblíquas a adoptar: "Os livros editados serão ostensivamente ignorados" - garantia o senhor Ulrich, representando a firmeza no todo da voz; "Os autores serão deliberadamente esquecidos" - etc, etc... propondo actos de selvajaria sobre a biografia dos citados. Os sacos de plástico seguros na mão já pesavam e começavam a garrotar a ponta dos dedos, mas não me despedi sem perguntar: "Senhor Ulrich, considera mesmo que uma editora em Portugal pode evitar o sucesso?"

A meio do texto (assinalado ®) está uma frase (provavelmente mal traduzida e longe do significado original) que corresponde ao nome de um blog - ante mare, undae

Pedro Lago